terça-feira, 20 de abril de 2010
SOBRE O PERDÃO Jean-Yves Leloup
O perdão, quando bem compreendido, é um instrumento de cura. Freqüentemente ficamos doentes porque não perdoamos e o rancor e a cólera nos corroem o fígado e os rins. A questão é como manter juntos o perdão e a justiça, (...) o olho da verdade e o olho da misericórdia.
Creio que não devemos perdoar muito rápido. É necessário, antes de perdoarmos, que expressemos o sofrimento pelo que nos foi feito e a isso chamo justiça. O sinal-da-cruz, tal como era feito nos doze primeiros séculos de nossa era, expressava bem esse sentimento. Começava-se por uma linha vertical, da testa ao peito, em seguida levava-se a mão ao ombro direito e depois ao esquerdo (atualmente faz-se o contrário), simbolizando a passagem da justiça para a misericórdia. Começando sempre pela justiça, exigindo que fosse reconhecido o mal que foi feito, o inaceitável de certas situações e de certas violências. Portanto, o pedido de justiça é essencial. Mas é essencial, também, ir além da justiça, em direção à misericórdia, em direção ao perdão, em direção ao lado que é o lado do coração.
O que é o perdão? O perdão é não aprisionar o outro nas conseqüências negativas de seus atos. É não nos aprisionarmos ou aprisionarmos o outro no carma. O perdão é a própria condição para que nossa vida continue a ser vivível. Se não perdoarmos uns aos outros, a vida vai se tornar impossível de ser vivida.
(...) Como fazer para que este perdão se torne algo verdadeiro? Platão dizia: “Aquele que tudo compreende, tudo perdoa”. Aquele que se conhece a si mesmo, com suas ambigüidades, pode compreender o outro em suas sombras. Portanto, inicialmente, o perdão pode ser uma questão de inteligência, de compreensão. Perdoar você significa que eu o compreendo, mas não quer dizer que (...) o que você fez é bom. Compreendo que você é um ser humano, que é capaz de me enganar como eu próprio faria se, provavelmente, estivesse nas mesmas condições.
A atitude de Cristo aos que queriam lapidar a mulher adúltera é: “Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra”. Lembrem-se como aos poucos todos se retiram, do mais velho ao mais jovem. Nesse caso Jesus se serve da Sagrada Escritura, não para mostrar aos outros como eles são pecadores, mas para fazê-la de espelho onde eles podem ver suas fraquezas, suas falhas e compreender as dos outros, não os aprisionando nas conseqüências negativas de seus atos.
Além de perdoar com a cabeça é preciso perdoar com o coração e, vocês sabem, o corpo é o último que perdoa. Se alguém lhes fez mal, se lhes causou sofrimento, vocês podem tê-lo perdoado com a “cabeça”, tê-lo compreendido com o coração, pensar que o passado passou. Entretanto, quando essa pessoa se aproxima, seu corpo se crispa e se enrijece mostrando bem que ele ainda não perdoou, que muitas memórias estão ainda bem guardadas.
Creio que é verdadeiramente uma graça quando nos encontramos perto de alguém que nos tenha feito mal e sentimos nosso corpo calmo, nosso coração límpido. Podemos dizer que, verdadeiramente, estamos curados. Por isso, creio que o perdão é uma prática de cura.
No Pai-nosso se diz: Perdoai-nos do mesmo modo como perdoamos. Como se o dom da vida só pudesse circular em nós dependendo de nossa capacidade de perdão. Se não perdoamos ficamos prisioneiros, bloqueados em uma situação, em um rancor, e a vida não pode circular.
Perdoar não é fácil...
Quando eu era jovem padre e morava no interior da França, todos os domingos levava uma senhora paralítica à missa. Ela era portadora de esclerose em placas. Um dia contou-me do ódio que nutria pela mãe porque a tinha impedido de casar-se com o homem que amava, e, apesar disso, passara a vida inteira cuidando da mãe, ocupando-se dela. Apesar de exteriormente comportar-se como uma mulher respeitável e admirável, dizia-me que em seu interior só havia raiva. A dureza de seu coração impregnara seu corpo, transformando-o em corpo rígido e paralisado. Assim, as doenças psicossomáticas têm, às vezes, uma origem espiritual.
Disse a esta senhora: “Já que você é cristã pode perdoar sua mãe”. Tornou-se encolerizada e, com uma raiva muito densa e muito íntima, respondeu-me: “Não, não, jamais a perdoarei. Minha mãe impediu-me de viver, o que sinto por ela é um veneno que levarei ao túmulo”. Neste momento compreendi o meu erro e lhe disse: “Você tem razão. O que você viveu é imperdoável. Você não pode perdoar quem a impediu de viver. Mas pense, creia, o Cristo que existe em você pode perdoá-la”. Atualmente eu lhe diria: “O ego não pode perdoar: Não se deve tentar perdoar com o ego. Entretanto, talvez o self possa perdoar. Talvez haja dentro de nós uma dimensão maior que nós mesmos, que pode compreender e perdoar”. Passaram-se cinco longos minutos. Em dado momento vi uma lágrima correr pela face daquela senhora. Ela chorou, chorou muito. Levantou-se da cadeira de rodas e saiu andando de seu quarto. Há mais de quarenta anos não chorava, há mais de dez anos não andava. Esse é o milagre do perdão.
Muitas vezes, está acima de nossas forças perdoarmos a partir de nosso pequeno ego. Se disséssemos “eu te perdoo”, seríamos hipócritas, pois nosso corpo e nosso coração não conseguem perdoar. Porém, podemos abrir-nos a uma dimensão mais vasta que nós mesmos e então o perdão pode chegar.
O perdão não é humano, é um ato divino. Quando Jesus perdoa, seja a mulher adúltera, seja Míriam de Magdala, seja um “colaborador” como Zaqueu, os fariseus que o cercam se perguntam: “Quem é este homem que perdoa? Pois só Deus pode perdoar”.
Assim, é preciso lembrar que, cada vez que perdoamos depois de termos pedido justiça, acordamos para uma dimensão divina de nós mesmos. O perdão é um exercício de divinização onde o humano se torna divino. Continuando humano, temos que reclamar justiça e, quando for possível, dizer o que foi mau ou destrutivo para nós e pedir uma reparação. Também somos capazes de misericórdia e de perdão. Portanto, é preciso que mantenhamos juntas a justiça e a misericórdia. São dois olhos, às vezes, estrábicos. Podemos esquecer a justiça e nosso perdão ser superficial, podemos esquecer o perdão e partimos para uma justiça inquisitorial.
Do livro O Corpo e seus símbolos, 1998
Jean-Yves Leloup, doutor em Psicologia, Filosofia e Teologia, escritor, conferencista, dominicano e depois padre ortodoxo, oferece através dos seus livros, conferências e seminários um aprofundamento dos textos sagrados, assim como uma abordagem e uma reflexão extremamente ricas sobre a espiritualidade no quotidiano graças à uma formação pluridisciplinar de rara complementaridade. Membro da organização das Tradições Unidas, doutor honoris causa e ciências da Universidade de Colombo (Sri Lanka), Jean-Yves Leloup ensina na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul em diferentes universidades e institutos de pesquisa em antropologia fundamental. É autor de mais de cinqüenta obras, além de ter comentado e traduzido os evangelhos de Tomé, Maria de Magdala, Felipe e João. Ele participa igualmente de vários encontros entre as diversas tradições.
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