domingo, 28 de novembro de 2010

Não estamos sozinhos - Capítulo 10 por Márcio Lupion - marcio@kallipolis.org

A clarividência se manifesta com o esquecimento de si mesmo...
O monge aprendiz, agora vivendo em uma "nova realidade" repleta de "ventos líquidos" e matizes multicoloridas, cores de altíssima vibração que emitiam som. Era uma música indescritível e que parecia ter vida própria, porque literalmente tudo à sua volta vibrava e respondia aos sentimentos mais sutis.
Uma felicidade infantil estava presente em cada segundo, como se vê na alegria de crianças que exploram o mundo pela primeira vez, e tudo isso passou a ser a base do cotidiano. Também era percebida uma estranha dualidade, pois ao mesmo tempo em que gostaria de mostrar tudo isso a todos que encontrava, aos amigos e, principalmente, aos descrentes, sabia no íntimo que poderia e seria ridicularizado mais uma vez. Não valeria a pena... com toda esta bem-aventurança, o Marcio estava vivendo um dos momentos mais solitários da sua vida.
O sentimento de perceber que nós emprestamos uma corrente energética aos objetos era realmente fantástico; que cada emoção tem uma cor como também um tom sonoro diferente, fazia toda a vida ganhar sentido. Nada ficou despercebido, tudo passou a importar muito, não havia mais tempo jogado fora, não existia mais a sensação de desperdício.

Os antigos egípcios viam a realidade possivelmente assim, pois quando chegamos com um grupo de alunos ao deserto de Saquara, ao percebermos uma quantidade de cacos e mais cacos de objetos cerâmicos na areia, perguntamos ao nosso paciente guia o porquê de tantos cacos e ele respondeu: - Ah... esses objetos cerâmicos foram jogados no chão para quebrar, pois no momento em que esses objetos se quebram, a utilidade deles se perde, assim sendo a sua energia vital volta para o outro mundo.
Exatamente como quando o corpo físico perde a utilidade e a nossa consciência se transfere para um novo corpo em outro plano.

Estava tudo caminhando às mil maravilhas até que em um determinado dia, passei pela faculdade, onde fui entregar alguns trabalhos.
Caminhei até o porão do prédio em que ficava o diretório acadêmico, olhei desatentamente para um canto qualquer, onde alguns colegas estavam dormindo no escuro, muito escuro; lá colocavam alguns colchões e almofadas e no meio daquela escuridão percebi movimentos, parecia que as sombras tinham ganhado vida, de repente, alguém estava se levantando entre as almofadas, olhou para mim e sobre os ombros dele percebi uma forma bizarra, uma forma feita de fumaça líquida escura, como fumaça de borracha pegando fogo, e quando eu olhei para aquele ser, aquela fumaça tinha olhos e com um pouco mais de cuidado dava para ver as mãos e os pés, este ser ficava sentado como um bebê nos ombros do pai, com as mãos e braços apoiados na cabeça do meu colega, o mais impressionante era que os olhares, tanto daquela entidade, quanto o dele, tinham o mesmo brilho embaçado, os dois respiravam da mesma forma, os gestos eram iguais, quando a entidade bocejava, ele também bocejava.

O colega andava arrastando os pés como se realmente carregasse um peso, o pescoço arqueado para frente e na barriga dele algumas situações realmente inusitadas que não lembro de ter visto em livro nenhum. Da sua barriga saía fumaça em forma de serpente, ou em forma de sanguessugas.
Quando olhei para aquela cena toda, deu para sentir realmente porque meu colega tinha tanto sono, provavelmente ele cedeu, em alguns momentos, para algum tipo de vício, que não me cabe entender nem julgar em momento algum. Mas dava para ver que ele era visitado por uma entidade que morava praticamente em cima dele, em alguns momentos ela desaparecia e surgia novamente em seu olhar. Fiquei realmente muito assustado... aquele ser percebeu, de alguma forma que desconheço, que eu estava conseguindo vê-lo.
Meu colega passou por mim e aquele ser ficou me olhando, tive que fingir que nada estava acontecendo. A entidade ficou olhando para trás o tempo inteiro e senti medo, um medo desconhecido, tremedeira, um suor profundo, meu corpo inteiro arrepiado, lembro que larguei o meu trabalho para trás, e fui até o ashram, bati na porta, incomodei nosso mestre, e no momento em que entrei suando e passando muito mal, ele me olhou e disse:

- O que foi Satyananda?

Mestre, acho que eu vi um demônio, acho que eu entendi o que é o mal, o mal inercial, aquele mal que não sai de perto das pessoas. Eu estou começando a ver pensamentos com formas.
- Não, você não viu pensamentos, você viu um visitante - disse meu mestre, e eu ainda perguntei:

Mas por que eu vi isso? Se eu medito, recito mantras, e vivo uma vida de entrega a Deus?

- Você viu isso porque isso está lá, essas coisas estão lá, as pessoas é que não vêem, as pessoas é que não querem ver.

E eu continuei: - Mas esse ser não era o meu colega.

- Não, não era, mas o seu colega e ele entraram em unidade em algum tempo, e agora cabe ao seu colega retirar o visitante no dia que ele desejar; ele convidou e é ele que tem que retirar.
Mestre o que eu faço?

- Você vai continuar um tempo na condição da clarividência, e depois vai ter que continuar o seu caminho e vai diminuir a visão desses reinos.

Desse dia em diante, compreendi que tanto os anjos percebidos nas nuvens, nos brilhos, nos sorrisos das crianças, sempre estão presentes, como também o lado negro e, nesse dia, percebi que aquelas gárgulas, aquelas formas de demônios, de bestas pousadas, paradas, esculpidas em pedras nas paredes das catedrais góticas, não são e nunca foram alegorias decorativas...

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